sexta-feira, julho 08, 2011

in, " Amor em conTextos "

De  repente, o  Vazio...
 Filipa Saanan


A casa ardia, havia fogo lá, e chumbo, estanho e carvão. Atordoada, perguntou para Mãe: devo chorar? Sim, Matilde. Mas, ela só pensava em chamas , e nas frases que o Irmão tantas vezes repetira:” o amor resiste ao fogo... o amor é mais forte que a morte.” Não era verdade, só agora entendia. Porque  o amor , ainda que exista é frágil. É tão frágil a ponto de ser invisível. E ser invisível e não ser nada é quase a mesma coisa. Tudo girava em torno de uma grande fogueira como aquela que canonizou Joana D’Arc.



As lembranças guardou embrulhadas na lavanda pós barba que Ele usava, em seu abraço derradeiro,  nos afagos piedosos e atropelantes das freiras a despertá-la para viver a primeira dor, para dar o primeiro mergulho no vazio do mundo. Para  afogar-se nos desentendimentos das letras do destino!

Após o funeral, retornou ao colégio, e todas as noites as freiras diziam: “faça uma oração por seu Irmão e pelas almas do purgatório’’. Obedecia, ajoelhava de mãos postas, esperando que de um momento para outro, Ele aparecesse num raio de luz seguido de bem aventuranças que acreditava, escorriam das asas de anjos.

Suplicava a Jesus que a levasse para as sombras do Sacrário, convencida de que Ele estaria dentro do Cálice Bento.

Ingênua, ainda não se dera conta de que não somos entalhados nas rochas bíblicas, menos gravados em ornamentos santos, mas apenas rabiscos nos traçados de Deus. E que D’s, de quando em quando, costuma passar seu apagador e a gente simplesmente desaparece de sua lista.

Apagava intencionalmente? Seria mesmo aquele nome que queria apagar?
Quem sabe a resposta?

Os cheiros ficaram. Cheiros até então, nunca sentidos: das rezas fúnebres do padre; da terra revolvida; da madeira póstuma; das velas; da cruz.

Seriam aqueles os cheiros novos , nos quais deveria  revolver-se para sempre?

Quantas camadas de pele existem em nossa alma? Há queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus na minha, pensei, ao ver Matilde em labaredas de lágrimas. Existem abrasões que ficarão em nós  ad infinitum - chagas vivas.

E imaginar que algo levitava eterno, enquanto de respirar se brincava naquele universo só deles, onde cabiam tardes amoradas, gargalhadas de arcoíris, histórias de mares monologais, e o globo terrestre onde navegavam sonhos de cartografias por terras longínquas.

Descobrira assim : as dores pertencem, e essa consciência elementar recolhe e unifica todas as dores dispersas, e num salto a consciência se abre , constata-se: a solidão é nascida.

Descobrira assim : infernos amotinados; ira petrificada ; ombros curvos; blasfêmias rubras; penúria turva; rotos suspiros; e as digitais da morte no seu rosto.

Tudo como desordens divinas : chuvas de lâminas, primavera sem proposituras, noites de lanças, e o declive das  flores aflitas junto ao corpo.


O olhar trava batalhas campais, fere o calvário, fura a fé, fende a página negra do ar que lhe falta.

Margens onde recostar a fronte- não mais, há que se cumprir o rol das horas  desencilhadas.

Há que repetir-se o imponderável manipulador, e aquele gosto perverso:gomo de sangue no canto da boca. Adaga ferina a cortar o vazio, e um engasgo-ferrugem que a alma nunca digere.

De Deus sutílimas tramas:
-no olhar sem pouso, a verdade é através : nenhum desígnio é inofensivo!

 julho/1986-pag.17

2 comentários:

  1. Comovente, Filipa. A cada dia renovado prazer em ler seus textos e artigos, e agota tb. sua poesia.
    Abraços,
    Maria Zélia Baeta-BH

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  2. Triste, porém de extrema beleza poética.
    Parabéns!
    Francisco Coimbra-rj

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Obrigada, volte sempre!
Filipa Saanan