Arrebatamento
Coralina consumia-se dentro de uma dor escandalosa que ultrapassava os ocos de sua insuportável solidão. Dor de crisálida para ser borboleta, dor de semente para ser flor, dor de rio para ser maresia. Tinha medo dos planos da avó com o padre, não queria ser sal da terra, não queria ser santa. Para vingar-se, quando o rubor do sol esmaecia no cair da tarde: sonhava! Cuidava dos silêncios para não assustar seus pensamentos.
Caminhava em dias de vírgulas.
Lavava a louça da cozinha, lavava e espremia suas vontades na espuma do sabão, o tédio ardia nos dedos, mas nunca escorria no ralo.
Velava as horas em pontos de cruz.
Bordava o tapete na varanda, bordava e fincava com a agulha os proibimentos da avó, enquanto lacrimosos desenhavam-se corações, rosas e agapantos.
Queria mesmo é bordar um tapete alado e entrar nas permissões do vento.
Queria é bordar liberdades.
Queimava-se nervo a nervo. Desfolhava-se pétala por pétala, qual flor vadia lambendo margens baldias.
Com absoluta impaciência, passava a semana inteira a esperar pelos filmes aos domingos no Cine Odeon. Cada um era magia nova, guardava todas as cenas para desenhar suas ideias messalinas.
O Sudário que adornava o oratório da sala era cópia sem santidade, sabia, mas lhe causava temores dos castigos de Deus, quando escrevia seus gostos no caderno de sonhos: mãos tateando suas partes, cheiro de homem a perfumar suas carnes, calor a queimar entre o joelho e a cintura, e aquele ardor a alvoroçar seus abismos.
Tragava em seco as reticências do desejo.
Mas, o olhar diagonal era denúncia, mergulho libidinoso na devassidão, qual adaga a cortar todas as pilastras de seu mundo-miúdo, rompendo as cascas, revelando segredos despudorados, quando espiava o moço do apartamento de frente a correr nas areias de Copacabana.
Poder trincar cada arrepio que lhe tomava naquele corpo viril, aguar o coração até o êxtase-tatuado em mil e uma noites nos lençóis moídos de faltas.Queria além, mais que as chuvas de seivas vertidas pelas purgações do corpo.
Sonhava e contorcia-se em agonias, até a raiz dos dentes.
Sonhava e contorcia-se em agonias, até a raiz dos dentes.
Vivia de esperar as páginas virgens dos sonhos, onde anotava todos os pecados.
Cobriu o pequeno altar e as fés da casa, escondeu o rosário de cristal na gaveta, bicho no cio, deitou nua. Flexível como haste do salgueiro ela verga.
Em suas mãos sabores vermelhos e as danças dos sentidos atiçam todas as labaredas de sua fome. Febril, passeia e desliza entre as vertigens do sexo.
Em suas mãos sabores vermelhos e as danças dos sentidos atiçam todas as labaredas de sua fome. Febril, passeia e desliza entre as vertigens do sexo.
Dentre os veios do prazer, escoam todos os seus afluentes, sarça que arde na pele do ventre.De sua boca farta de inventos e doçuras, saltam todos os seus avessos e espinhos a rasgar as retinas do leito.
Selvagem, Coralina cavalga o amor até prover pleno esquecimento de si.
Líquida , persegue o gozo como quem persegue iluminantes epifanias. Embriagada e úmida bebe do vinho, come da carne: - fêmea plenifica-se!
Quando os olhos relaxam, tudo é!
Brilhante, delicada forma de dizer o erótico.
ResponderExcluirMaria Beatriz Barros-RJ
Filipa das 1001 letras.Adorei o conto, erotismo sem vulgaridade. O desdecho é brilhante:
ResponderExcluir"Quando os olhos relaxam, tudo é!".
Ainda bem que sonhar é possível.
Angela Baeta
Como é bom ler eróticos sem os usuais recursos estilísticos que tanto me cansam. Através da Literacia, Filipa e Ricardo me mostraram que o erótico com qualidade existe e está pertinho de nós.Aqui.
ResponderExcluirObrigada, Poeta!
Belvedere
"Sonhava e contorcia-se em agonias, até a raiz dos dentes.
ResponderExcluirVivia de esperar as páginas virgens dos sonhos, onde anotava todos os pecados."
Pura riqueza poética!
Um conto de en-Cantar!
Luiza Bellato-RJ
Beatriz,Angela, Belvederee Luiza, muito obrigada pela leitura e presenças aqui.
ResponderExcluirAbraços de, Filipa
Filipa,
ResponderExcluirGosto muito de poesia em prosa.
Poesia grandiosa, bem construída,
como a que acabei de ler.
"Vivia em dias de vírgulas."
Li em dia de dois pontos,
porque seu texto me fez lembrar
do que o poeta falou:
"A poesia é o eco da melodia
do universo no coração dos humanos." (Rabindranath Tagore)
Continue a sua bela sinfonia,
talento você esbanja.
Parabéns,
Eliana Crivellari
Eliana querida,
ResponderExcluirObrigada por suas palavras carinhosas e por estar sempre aqui.
Beijos, Filipa