sábado, junho 25, 2011

A Palavra é Arma.

Infâmia
[Sandro Botticelli-Calumny of Apelles =1494-95/Galleria degli Uffizi, Florença]

Filipa Saanan

“Nos tempos de fama, é bom pensar na infâmia também”.

Termino a leitura de Infâmia, penúltimo romance de Ana Maria Machado, onde a escritora questiona as armadilhas e ardis das calúnias que com tanta frequência maculam a verdade.

Ana Maria partiu de feitos reais para construir sua trama.

Após catalogar uma série de noticias sobre diversos casos de calúnias e difamações, como do ex-ministro Alceni Guerra, acusado de burlar uma licitação para a compra de bicicletas, dos donos da Escola Base-SP, citados como envolvidos no abuso sexual de uma aluna, e do médico Joaquim Ribeiro Filho, apontado como fraudador da lista de transplantes para beneficiar o irmão do cineasta Guel Arraes.

Todos eles submetidos a juízo, sendo inocentados das acusações/crimes, a eles atribuídos.

A obra aborda também o papel da imprensa, como instrumento caluniador, quando ataca pessoas e instituições, sem compromisso com a verdade, amparada em fontes nada confiáveis ou parciais.

A Autora focou de forma mais acentuada os casos pertinentes à esfera pública da infâmia, perpassando brevemente pelo plano individual , quando narra a história do marido que faz a mulher se passar por louca, e a do funcionário de uma repartição que é acusado injustamente - via uma notinha no jornal interno do trabalho, até chegar ao horário nobre da TV. Retrata também a opressão privada, da filha de um embaixador, que morre misteriosamente, cujo marido é um diplomata, que tem o poder político e familiar. A narrativa inclui um personagem que faz um documentário sobre fraudes na História do Brasil e sobre os dossiês falsos, que explodem em períodos eleitorais.

Aos poucos, os personagens se verão presos a uma rede de falsas acusações, num turbilhão kafkiano que só pode levar à tragédia pessoal e familiar.
As vítimas ficam indefesas, devassadas pela mídia, subjugadas ao sofrimento silencioso diante a violenta artilharia dos caluniadores.
Em Infâmia, Ana Maria Machado entrelaça fatos da história recente brasileira em que a verdade distorcida por calúnias, nem sempre prevalece.

O livro atinge a intenção da Autora, que declarou em entrevista ao Canal Cultura: “meu propósito foi mostrar solidariedade com a dor e o sofrimento das vítimas de acusações falsas. E hoje em dia, com a rapidez da internet, isso se espalha de tal maneira que não tem volta”, ressalvando, porém, que há casos em que a denúncia se justifica e por tal deve ser objeto de investigação e informação.

A quantidade de escândalos reais é tão grande que ninguém mais se espanta com nada e está propenso a acreditar em qualquer coisa.

Partindo desta premissa, a leitura me transportou para um estado de reflexão sobre as pequenas [?] Infâmias nossas de cada dia, aquelas das palavras inconsequentes, dos juízos de valores preconcebidos-sem bases sustentáveis, das interpretações ferinas sobre o próximo, traduzidos em palavras venais - alimentos diários dos difamadores e suas línguas viperinas, distribuídas de forma gratuita e maliciosa, e que de repente se replicam em efeito dominó, impossível de ser contido, mas que provocam estragos irreparáveis.
Testemunho disto dá Oscar Wilde em “De profundis”: “Passei não da obscuridade à momentânea notoriedade do crime, mas de um tipo de fama para um tipo de eternidade de infâmia” (1989, p. 917.).
Dentre os muitos males que o verbo infeliz pode produzir, a infâmia é, possivelmente, dos mais graves. Vivemos tempos em que proliferam os julgamentos arbitrários, as acusações indébitas, as suspeitas inapeláveis, capazes de engendrar a destruição dos mais nobres ideais e de vidas respeitáveis.
Nascem na maioria das vezes na conversa simples, porém, perniciosa. Emanam de observações tendenciosas e elaboradas na impiedade, que se difundem facilmente em decorrência da hora vazia- de muitos, pela dilatação dos ultrajes destilados.

A Infâmia é irmã de sangue da Inveja


Estamos inseridos num contexto social onde o Ter se sobrepõe ao Ser, o que resulta em graves falhas no caráter humano. Entre as piores estão a inveja e a calúnia. Os invejosos e caluniadores são sempre pessoas frustradas, capazes das piores deflexões morais e que procuram destruir aquilo que inconscientemente admiram. Como não têm coragem de lutar pelos seus sonhos, preferem destruir aqueles que conquistaram algo por seus esforços e tenacidade ou simplesmente porque são felizes. Todo invejoso é um ressentido, pois acha que a vida lhe deve algo, ou melhor, que a vida lhe tomou alguma coisa – que ele exatamente não sabe às vezes o que é.
Para tais criaturas, basta que o jardim alheio flore mais que o delas.
Os invejosos e caluniadores a partir dessas características cognitivo-emocionais, são sujeitos de ações que simbolizam o pior do humano. Odeiam fingindo amar; geram intrigas fingindo ter o altruísmo da amizade. São indivíduos com adoecimento moral, focos de estudos tanto da Psicologia, quanto da Psicopatologia.
    A Infâmia como fruto da Inveja, é tratada desde os primórdios da civilização, na mitologia, na filosofia, na história, e na literatura.
         Vejamos dois exemplos:

I. Na mitologia:- A inveja e o mito da Medusa



Medusa era uma górgone, criaturas com cobras na cabeça em vez de cabelos.
O mito de Medusa é a representação perfeita daquilo que chamamos de inveja. Em uma de suas versões conta-se que seu pai Fórcis a transformou em uma bela mulher em troca de sua imortalidade. Porém Atena invejou tanto sua beleza que a transformou em uma górgone e a partir daí, sempre que alguém olhasse nos olhos de Medusa estaria condenado; transformando-se em pedra.
E assim é a inveja... ao nos depararmos com alguém que possui algo que não possuímos, nos sentimos incomodados e é neste exato momento que se instala a inveja. Ficamos petrificados diante daquilo e por instantes desejamos em nosso íntimo ser aquela pessoa. Isto acontece justamente pela condição narcisista e egocêntrica visíveis em alguns indivíduos.
A inveja é a necessidade compulsiva de ser o outro e de possuir o que o outro tem, mesmo quando negamos este sentimento.


II. Na literatura:- Otelo e Desdêmona.


Shakespeare, em uma única obra, revela como o personagem Iago através da inveja e da calúnia destruiu a história de amor entre Otelo e Desdêmona.



Otelo é um general mouro que serve o reino de Veneza, esta história gira em torno da traição e da inveja, inicia com Iago, alferes de Otelo, que trama com Rodrigo uma forma de contar ao rico senador Brabâncio, que sua filha Desdêmona havia se casado com Otelo, esta vingança é movida pela promoção de Cássio, jovem soldado florentino, intermediário da relação entre Otelo e Desdêmona.

Iago considerava a promoção injusta, Brabâncio, havia deixado Desdêmona livre, para escolher quem quisesse como marido por crer que esta escolheria como cônjuge alguém de sua classe, com a descoberta de que a filha havia casado com um Mouro sai à caça de Otelo para matá-lo, no momento do encontro dos dois chega um comunicado do Doge de Veneza que convoca- os para uma reunião urgente no senado.

Nesta reunião, Amâncio acusa Otelo de ter induzido Desdêmona a casar-se com ele através de bruxarias, sem provas, Otelo como defesa faz um relato de sua história de amor que é confirmado por Desdêmona, diante disto e por Otelo ser considerado o único capaz de comandar o exercito no contra-ataque a uma esquadra Turca que se dirigia a ilha de Chipre, Otelo é inocentado.

O casal segue para Chipre em barcos separados na manhã seguinte, durante a viagem uma forte tempestade faz com que as embarcações se separem Desdêmona chega primeiro a ilha, Otelo chega mais tarde com a novidade, pois a esquadra turca havia sido destruída pela fúria das águas deste modo não haveria mais guerra.

Iago, já em Chipre planejava um terrível plano de vingança, contra Cássio e Otelo. Hábil conhecedor da natureza humana entedia que o tormento mais aflitivo do amor, é o ciúme, sabendo Cássio dos amigos de Otelo o que mais possuía confiança, e o mesmo por sua beleza e juventude capaz de despertar em Otelo, um homem já maduro, ciúme por ser Desdêmona, uma jovem e bela mulher. Durante uma festa que os habitantes da ilha prepararam a Otelo, Iago induziu Cássio a se embriagar e envolver-se em uma briga com Rodrigo, quando o mouro soube do acontecido destituiu Cássio de seu posto.

Iago começou a jogar Cássio contra Otelo, e fez o mesmo crer que a punição teria sido muito severa e que este deveria falar com Desdêmona para que ela convencesse Otelo a devolver-lhe o cargo, Cássio não se deu conta dos planos de Iago e aceitou a sugestão.
Continuando seu plano, Iago sugeriu a Otelo que Cássio e sua esposa poderiam estar tendo um caso, tudo fora tão bem traçado que Otelo começou a desconfiar de Desdêmona.

Iago sabia que Desdêmona havia sido presenteada por Otelo com um lenço de linho que fora de sua mãe, o Mouro acreditava que este lenço era encantado e por enquanto sua amado a tivesse, a felicidade do casal estaria garantida. Após ter encontrado o lenço perdido por Desdêmona e conhecedor da crença de Otelo, Iago diz ao mesmo que sua mulher havia presenteado seu amante com o lenço, Otelo já enciumado, pede o lenço à esposa, que não sabe explicar o que aconteceu com ele, neste meio tempo Iago coloca o lenço no quarto de Cássio.

Em prosseguimento ao diabólico intento, Iago fez com que Otelo se escondesse para ouvir uma conversa entre ele e Cássio, os dois falam sobre Bianca amante de Cássio, porém Otelo escuta apenas parte da conversa e acredita tratar-se de Desdêmona. 

Otelo fora de si imagina Desdêmona presenteando outro homem com seu lenço, as consequências disto foram que Iago em nome de sua lealdade jurou matar Cássio para vingá-lo, porém sua intenção era matar Rodrigo e Cássio por esses representarem empecilho a seus planos, mas na verdade o que aconteceu foi que Rodrigo morreu e Cássio ficou apenas ferido.

Completamente descontrolado, Otelo mata Desdêmona em seu quarto, quando Emília esposa de Iago, sabendo do que havia acontecido a sua senhora, revela ao General-Mouro que a esposa nunca lhe fora infiel, e descreve toda trama de seu marido. Iago mata Emília, foge, mas logo é capturado.
Desesperado por saber que matará seu grande amor, Otelo apunhala-se no peito caindo sobre o corpo de sua amada e morre beijando-a.

Calúnia, Difamação, Injúria.
“Pois quem quer amar a vida e ver dias felizes refreie a língua do mal e evite que os seus lábios falem dolosamente.” 1 Pd 3:10.



Todos conhecemos estes três venenos da convivência humana.

Na calúnia, o caluniador atribui ao caluniado a prática de um ou mais atos ilícitos ou criminosos. É uma ofensa, digamos, mais precisa- técnica, e pode ocorrer em linguagem educada, melíflua, sem deixar de ser calúnia. Na difamação o agente "suja", mentindo, a reputação do difamado, apontando-o como pessoa de conduta duvidosa e/ou autor [a] de atos indecorosos, seja no relacionamento social, profissional, ou outro qualquer. Finalmente, a injúria, significa a ofensa verbal, ou física, o "insulto".
O prazer do difamador reside em macular e denegrir o nome e a identidade do outro.

Longe de mim, a pretensão moralista dos “bonzinhos”- morro de medo deles, são de alta periculosidade.

Entendo que viver, além de um aprender diário e interminável, é principalmente ser parte do todo que nos cerca e envolve, é ser agente ativo na Sociedade, por tal, jamais faria apologia ao silêncio da indiferença, ou da voz amordaçada pela omissão, desejo sim a força viva da Palavra Verdadeira e Responsável:

- a favor dos vulneráveis, da justiça, da cidadania, da transparência democrática, da igualdade, e da promoção humana.

Que nossa Palavra possa fazer a diferença para um Mundo Melhor!


Concluindo, afirmo:

A Inocência das vítimas-caluniadas, nunca será difundida da mesma forma que a Infâmia foi alardeada.

Válidas: a reflexão sobre o tema, e a leitura de:


Infâmia
Ana Maria Machado
Editora-  OBJETIVA
Nº de Páginas 280

6 comentários:

  1. Muito Bom, como sempre Filipa!
    Sábias palavras, vou ler o Livro que recomenda.
    Abs, Nisia A. Lemos-RJ

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  2. Com toda certeza, Amiga- vale a reflexão e certamente a leitura recomendada.
    Parabéns por este jeito todo seu de Ser e Estar na vida.
    Bjs, anamerij

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  3. Nao gostei do livro, achei fraco. Seu artgo mais completo e bem mais elucidativo.
    Ademir Rosa Filho-rj

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  4. Parabéns, um artigo adequado e bem elaborado.
    Mário Jorge Brum-BH

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  5. SUA COLUNA É DEMAIS!
    Roger Braga- Quintino/RJ

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  6. Uma forma diferente de resenhar, bem elaborada e com bases literárias interessantes.
    De fato, estamos em busca do Ter, esquecendo o Ser. Como vc. , acho que a Infâmia é correlata com a Inveja.
    Valeu!
    Eliza de Barros Gama-RO

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Obrigada, volte sempre!
Filipa Saanan