Cinema e Poesia
[Dedico a:Belvedere Bruno, Maria João,Naldo Velho, Osvaldo Pastorelli, Eliana Crivelani, Elane Tomich,Ana Merij e Claúdia Cardoso, porque inspiraram este artigo].
Breves Recortes de uma relação intersemiótica em Akira Kurosawa*
Segundo Freud e Lacan, os sonhos são a estrada através da qual o conhecimento do inconsciente se torna possível. Seja qual for a conceituação, nada é mais encantador do que a pura entrega ao espetáculo do sonho, reino de imagens poéticas e sons cuja mensagem sempre se mostra misteriosa e plena de magias.
Para Akira Kurosawa, é a própria vida:- sonho e poesia se complementam de tal forma que transfere esta linguagem imagética para seu universo cinematográfico, onde, múltiplos recortes temáticos de um cineasta inquieto- sempre em conflito com suas próprias crises existenciais, porém obstinado pela luta à valorização das relações humanas e a esperança de um mundo melhor
É o que Akira nos demonstra, mais que em qualquer outra de suas obras, em Sonhos:- uma relação intersemiotica, entre a linguagem artística e sua interlocução com o cinema, em especial na expressão estética e narrativa de elementos capturados de outras artes.
Kurosawa fez com que o distante e complexo cinema nipônico chegasse aos mais diversos públicos. Se durante décadas os seus filmes permaneciam restritos a uma elite de cinéfilos, hoje ele - gênio contemporâneo das imagens faz com que imensas faixas aproximem-se de seus filmes.
De toda sua imensa filmografia - sem dúvida que "Sonhos" é o mais delicado, o mais belo, lírico e absorvente de seus filmes.
Só um artista e pensador em sua plena maturidade poderia conceber uma obra em que unisse a reflexão, a visão onírica de um território tão imenso - o dos sonhos ,em tão harmoniosa ode a favor da humanidade.
- Sonhos:
Uma Ode à beleza, ao amor, a natureza, a paz, ao entendimento entre os Homens.
Sonhos trata em sua maior parte, da natureza, do egoísmo humano, da destruição do planeta, num esplendor de imagens e gestos.
Como nas poesias líricas, cada página fílmica de Sonhos sempre inicia com a frase recorrente –“Eu tive um sonho...”. A presença de elementos poéticos na narrativa de Sonhos eclode em todos os seus episódios, de maneira diferenciada. Kurosawa busca apresentar signos representativos de uma linguagem onírica interligada a temas fundamentais de sua vida e da cultura japonesa, a saber: - a infância em “O Sol em meio à chuva”; a natureza em “O Pomar dos pêssegos”; a morte, em “A Nevasca”; a arte, em “Os Corvos”; a bomba atômica, em “Monte Fuji em Vermelho”; a ganância, em “O Demônio Chorão”; e a tecnologia versus tradição em “Povoado dos Moinhos”.
Além da característica sintética, Sonhos se destaca com um filme que não se limita a uma única interpretação. Cada curta [montagem inicial da película- vários curtas] está repleto de valores morais e filosóficos, que se abrem como num hai kai, linguagem poética-por similitude conceitual, conjugada em sugestiva relação onírica.
Pomar de Pêssegos é capitulo marcante. Levado por uma estranha força ao local onde ficava o pomar de pêssegos de sua família, um garoto encontra o imperador japonês e seus súditos numa espécie de morro cortado em patamares - o que remete à tradicional hierarquia japonesa. Eles estão preparados para dançar e celebrar "O Dia da Boneca", ou seja, o florescimento dos pessegueiros, pois os bonecos representam os espíritos das árvores. Porém todas foram cortadas e não há mais o que celebrar. Acusado de egoísta pelo imperador, o garoto puro chora a morte das árvores. Como prova de comoção eles dançam uma calma e sincronizada dança. Nesse momento começa a chover pétalas de flores de pêssego e no local em que estavam as pessoas surgem lindas árvores floridas.
Os questionamentos sobre o caos da modernidade são profícuos, destaco:
-de que adianta tanto conforto proporcionado pelas invenções atuais, se paz já não há; se o homem perdeu seus valores fundamentais, tanto nas relações interpessoais- quanto nas relações com a natureza?
-de que adianta tanto conforto proporcionado pelas invenções atuais, se paz já não há; se o homem perdeu seus valores fundamentais, tanto nas relações interpessoais- quanto nas relações com a natureza?
O filme termina com uma lição: um cortejo festivo para celebrar a morte de uma senhora de 99 anos - afinal, nada mais justo do que se despedir de uma pessoa que viveu muito bem e de forma completa com dança e música.
[Van Gogh, desenho de Akira Kurosawa para o roteiro de Sonhos].
O fascínio do diretor pelo pintor Vincent Van Gogh ,é retratado em Corvos, no qual um homem, ao admirar um quadro do artista, é levado para dentro da obra. Além de passear pelas pinturas do ídolo ao som da Nona Sinfonia de Beethoven, recebe uma lição de pintura do holandês:
-só é capaz de pintar aquele se envolve com a natureza, que a admira e segue a beleza que ela tem a oferecer.
Neste cenário cromático, estabelecido o diálogo entre movimentos e poesia, que ao olhar cinematográfico permite conceber a imagem como um quadro a ser pintado com as cores possíveis de nossas percepções sobre o universo que nos cerca, através da interlocução entre culturas e as mais diversas áreas do conhecimento, alargando novas perspectivas para os saberes.
"Sonhos", em cada um de seus segmentos, pode justificar longos ensaios e apreciações sobre a condição humana, demonstrando que o ser por mais suscetível que esteja às vicissitudes do mundo, poderá sempre concebê-lo de forma poética ao mesmo tempo em que se permite a critica sobre a sociedade e sua conturbada realidade vigente.
A Imagem Poética
Selecionamos Os Corvos, para demonstrar a analogia entre poesia das imagens e a cinematografia poética, sempre aliada a elementos sonoros, dramaticidade, simbologias, espaço e tempo. Neste episódio [o que também se manifesta em todos], Akira nos mostra a imagem como um vislumbre da verdade que nos é permitida em nossa cegueira, tornando-a única e singular-como a própria vida é. Os instantes poéticos de cada cena se fixam no infinito de nossas memórias, representados como figuras de recriação do que há de peculiar e único, é o Poeta a dizer de cada objeto, de cada gesto, em sua mais absoluta exclusividade onírica.
A câmera de Akira é o olho que tudo vê e revela, observem tal assertiva na cena descrita: - um homem caminha entre as telas-pinturas, durante este caminhar o Diretor realiza enquadramentos onde despontam magicamente as paisagens propostas pelo Pintor. Dentre os elementos que marcam a presença do diálogo com o poético pode-se visualizar as composições das cores, a lúdica estrutura cenográfica. A luz pontua e enfatiza a poesia. Desta forma percebemos que Kurosawa brinca com a relação entre o tempo e o espaço, de maneira a criar uma narrativa metalinguística, que extrapola os limites da percepção no quadro fílmico. O tempo é dimensionado de acordo com a passagem do personagem por cada quadro e o espaço é redefinido pela plasticidade de cada paisagem pintada por Van Gogh.
São múltiplas as modalidades em que se pode absorver a atuação de uma montagem poética no cinema. Uma delas é o domínio da regência cinematográfica de forma tal, que se torna possível conjugá-la a outros suportes artísticos como a pintura, a música, o teatro, a dança, e a literatura.
E nesta arte, Akira Kurosawa é uma das maiores expressões contemporâneas, pois como poucos, conseguiu promover de forma magistral a interação poética e narrativa fílmica, em processo de tradução intersemiótica – nas conversas entre literatura e cinema, construindo as mais belas simbologias cinematográficas.
Só um artista e pensador em sua plena maturidade poderia conceber uma obra em que unisse a reflexão, a visão onírica de um território tão imenso como o dos sonhos - como um verdadeiro hino a favor da humanidade.
AKIRA KUROSAWA É ENTIDADE PLURAL E ETERNIZADA NA SÉTIMA ARTE!
Filipa Saanan
*Akira Kurosawa, em japonês 黒澤 明, Kurosawa Akira, (Tóquio, 23 de Março de 1910 – Setagaya, 6 de Setembro de 1998) foi um dos cineastas mais importantes do Japão, e seus filmes influenciam uma grande geração de diretores do mundo todo. Com uma carreira de cinquenta anos, Kurosawa dirigiu 30 filmes. É amplamente considerado como um dos cineastas mais importantes e influentes da história do cinema.
Leitura Recomendada
À ESPERA DO TEMPO – FILMANDO COM KUROSAWA
Autor: Teruyo Nogami
Tradução: Diogo Kaupatez
Prefácio: Donald Richie
Quarta capa: Martin Scorsese
Coedição: Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Idioma: Português
Coleção: Mostra internacional de cinema
Reunião de textos escritos e ilustrados por Teruyo Nogami sobre o trabalho que exerceu ao lado do cineasta Akira Kurosawa como continuísta e diretora associada por aproximadamente meio século. De Rashomon até Madadayo, Nogami manteve uma espécie de diário em que registrava curiosidades sobre as filmagens, os bastidores e as locações, entre outras coisas. Seus relatos em primeira pessoa, sempre acompanhados por desenhos das “cenas” mais marcantes, eram confeccionados durante as folgas entre as filmagens, enquanto a equipe esperava pelo tempo perfeito para o trabalho.
Seis anos depois da morte de Kurosawa, a autora decidiu reunir em livro todo esse material, além de alguns textos já publicados em revistas de cinema e relatos novos. À espera do tempo – Filmando com Kurosawa, que a Cosac Naify lança em parceria com a Mostra Internacional de Cinema, publicado agora numa tradução diretamente do japonês possibilita o conhecimento não só da obra e personalidade do cineasta, mas principalmente do processo criativo e produtivo de um dos maiores gênios do cinema.
Fontes de Pesquisa:
Fontes de Pesquisa:
-Nogami,Teruyo -À ESPERA DO TEMPO/Tradução:Diogo Kaupatez
-Guerra,Ruy-artigo Cinema de Poesia/Revista Cinemais
-Kurosawa ,Akira- Relato autobriográfico/Tradução Rosane Barguil Pavam, Marina Marina Naomi Yanai, Heitor Ferreira da Costa
-Hegel-Estética da Poesia-Lisboa Guimarães Editores
-Lotman ,Yuri -Estética e Semiótica no Cinema - Editora Estampa
Filipa, quantas facetas!
ResponderExcluirÉ COM PRAZER QUE ME ENCONTRO COM SUAS PALAVRAS.
Artigo primoroso.
Abs,
Maria Zélia Baeta-BH
Filipa, não sei o que escrever, não sei o que dizer, apenas posso dizer que emocionado com tão belo text e com lágrimas nos olhos agradeço a dedicatória, e que venham outros belos textos como esse, parabéns, estupenda análise sobre Sonhos, beijão menina. Abraço e sucesso.
ResponderExcluirFilipa
ResponderExcluirKurosowa é um mestre! De todos os diretores/cineastas que já tive a oportunidade de acompanhar a obra, ele é o que maior identificação tem com a poesia.
Belíssimo texto minha amiga
Naldo Velho
Maria Zélia, Osvaldo, Naldo, obrigada pela leitura.
ResponderExcluirAbraços de Filipa.
Filipa,
ResponderExcluirSó tenho a aprender com você, e muito lhe agradeço pelo carinho.
Parabéns pelo belíssimo artigo,
mais um de seus brilhos,
Eliana Crivellari
Eliana, obrigada, aprendemos juntos-sempre.
ResponderExcluirEstarei ausente por uns dias, mas sempre que possível, passarei por aqui.
Filipa
Você é genialidade, Filipa. Não tenho palavras para descrever o que sinto com suas letras. Obrigada por tudo.
ResponderExcluirBjs
Belvedere
Pipa, que bela homenagem ao GRANDE diretor japonês."Sonhos" é um dos filmes que mais gosto
ResponderExcluirObrigada,
Elane
Anônimo disse...
ResponderExcluirAkira Kurosawa fez do cinema aquilo que ele era. Por isso, a sua mensagem emociona os "mais diversos públicos". Ele era uma pessoa especial. E estas pessoas, numa época regida pelos valores do mercado e da mídia, fazem cada vez mais falta. Elas têm uma maneira única de lidar com as coisas. E dão um belíssimo contributo para um mundo mais justo e mais fraterno.
Impressiona-me a Luz do olhar de Akira, a incidir sobre um Caminho Novo que se vai tornando mais visível, à medida que o conheço melhor. Ver os seus filmes é mergulhar numa dimensão em que eu gostaria de ficar.
Parabéns, Filipa, por esta excelente homenagem ao grande cineasta japonês Akira Kurosawa!
E, pela parte que me toca, muito obrigada pela dedicatória.
Um grande abraço
Maria João Oliveira